Ouvir pessoas tem sido um de meus “ofícios”.
Abrindo o coração, elas dão a volta ao mundo sem sair do lugar, falam de seus dramas. De repente, embarco em “cenários”, torno-me parte de histórias, Sinto “dores de parto”; sofro…
Os dias são difíceis, nós já sabemos. Há um “espírito” pairando sobre nós – zeitgeist. Somos todos e não somos ninguém, nos commoditizamos, estamos em processo de desconstrução, pois tudo ao nosso redor é impermanente. Desumanizados, sem essência, sem substância, existimos sem a porção que nos torna gente.
Lembro de Graciliano Ramos, no seu livro “Vidas Secas”. É a história da mudança e da fuga. Produzido na década de 1930, “Vidas Secas” poderia ser a crônica de um jornal de hoje. Pessoas em fuga! De si mesmas, de lugares, de histórias, de “miséria” em “miséria”. Não se trata mais, como no romance, da busca pela subsistência, mas das premissas mínimas para a existência.
Ezequiel nos expõe esta mesma realidade no capítulo 37 quando fala do “Vale de Ossos Secos”. Ali ele é levado a um local ermo aonde Deus lhe faz uma surpreendente revelação. O cenário ganha contornos de uma “sala de cinema” e o profeta, transformado em “mídia”, torna-se o “projetor” do inconsciente coletivo – Jung – da nação de Israel. Diante dele está o holograma imaterial do que estava acontecendo no mundo da matéria, das coisas visíveis.
A “visão” de Ezequiel é fenomenológica, conforme Kant, pois está acontecendo no tempo e no espaço, mas também é consciência geral, comum a todos os sujeitos cognitivos, conforme Husserl. Neste cenário “ficcional”, ele vê diante de si um cemitério, um lugar onde a vida se extinguiu por completo. É o “mosaico” de “Vidas Secas” sob a pintura expressionista de Portinari.
De fato, aqueles eram dias difíceis… Israel, exilado na Babilônia, estava diante de uma cultura muito diferente da sua. Havia um forte sentimento de perda, pois Jeová os havia abandonado, e isso criara uma amargura incrustada na alma, um sentimento de revolta, de desespero e solidão. Foi à soma de toda esta energia psíquica que “produziu” a “visão” que Ezequiel, pelo Espírito, contemplou.
Ler o texto de forma consecutiva nos dá a impressão de que a “visão” do profeta não é “visão”, mas realidade, aquilo que está acontecendo naquele momento. Mas, na verdade, não é assim… Há algo no texto, ainda que sutil, que muda esse eixo de interpretação. Está no verso 11. Nele o autor faz a guinada na narrativa e, deixando o mundo espiritual “para trás”, retorna ao concreto, ao real. E é só a partir daí que Deus começa a esclarecer ao profeta o que ele havia visto: “11- Então ele me disse: “Filho do homem, estes ossos são toda a nação de Israel. Eles dizem: ‘Nossos ossos se secaram e nossa esperança desvaneceu-se; fomos exterminados”.
Naquele momento, a “visão” já havia cumprido o seu propósito: construir no coração de Ezequiel as percepções necessárias para o desenvolvimento de sua missão. Dali por diante, não era mais preciso “olhar” para o “Vale de Ossos Secos”, pois ele representava apenas “EFEITOS”. O grande desafio era voltar-se para as pessoas, para o mundo cotidiano, pois ali estava as “CAUSAS”, o nascedouro dos fenômenos capaz de transformar Vidas Singulares em “Vidas Secas”.
E tudo começa com o que está dito no verso 11: “nossos ossos secaram”. Não é uma frase solta, um lamento despretensioso. É o gemido que sai do íntimo do ser, pois a sequidão da alma havia chegado até aos ossos. Aqui está uma das causas para a desconstrução de vidas: “ALIMENTAR” O MUNDO IMATERIAL COM AS PRODUÇÕES DO MUNDO REAL. Principados e potestades “comem” tudo aquilo que nós produzimos! Por isso nossa luta não é contra pessoas, mas contra seres do mundo espiritual. “A serpente se alimenta do pó da Terra”; demônios se banqueteiam com sentimentos como iras, ódio, inveja, amargura, rejeição, e constrói em torno de nós uma “engrenagem” que se retroalimenta de tudo isto.
A cura só se processa quando a alma é sarada pelo Espírito de Deus, através da pacificação interior, do perdão que é dispensado pela graça Divina. Isto fica perceptível no texto, pois a “reconstrução” do cenário de morte começa de dentro para fora; os ossos ganham nervos, tendões, carne e pele. A estrutura se ergue, fica de pé, mas ainda não tem fôlego, são autômatos, zumbis! Ainda se está diante de um cemitério. Só quando o Espírito é “soprado” sobre aquelas “carcaças” é que a vida recomeça e elas se tornam humanos.
O segundo ponto que percebo no texto, e que gera demolição em vidas, é a perda da esperança. Veja novamente o verso 11: “nossa esperança desvaneceu-se”. Trata-se do aprofundamento do estágio anterior; é A PAVIMENTAÇÃO DO CAMINHO PARA A DESARTICULAÇÃO DAS ESTRUTURAS DO PSIQUISMO. Quando a esperança se vai, a pessoa não acredita mais em nada. É o “esquematismo da miséria”. É Neste estágio que se instalam em nós doenças como a depressão, os distúrbios psicossomáticos e as síndromes – do pânico, por exemplo. A vida perde o apetite, o significado, a razão de ser.
Thomas Quincey diz que “as pegadas feitas na alma são indestrutíveis”. Ali estava um povo ferido, sem esperanças. Suas almas eram como masmorras sombrias, “esgotos” de desespero e agonia. Trancadas em si mesmas elas se revolviam em meio à dor e assim drenavam toda energia vital, toda alegria, tudo o que produz paz e bem. Tire os sonhos de um ser humano e você verá que ele não terá mais horizontes. Os Israelitas já não acreditavam que era possível sair daquela girândola da morte.
Aí entra Deus no descaminho humano! O verso 12 diz: “abrirei os seus túmulos e fá-los-ei sair”. Sim, há pessoas cujo interior tornou-se cova, lugar de morte. Ali está todo acúmulo de negatividade que a vida deixou. É como o sargaço trazido pela maré que fica na praia e apodrece. Mas Deu derrama luz nas nossas trevas! É a luz da confissão e do arrependimento que faz com que a poeira dos porões do ser saia pelas janelas da alma! É o resgate da vida! O choro dura uma noite, mas a alegria vem pela manhã!
Finalmente, ainda percebo um último “fenômeno” que destrói pessoas. Observe a fala final do verso 11: “fomos exterminados”. É uma afirmação conclusiva, definitiva, última. Viver agora é mero cumprimento de obrigação, é rotina, enfado e canseira. Este “sentir” representa o que considero A CONSTRUÇÃO DA LOGÍSTICA PARA ACOLHER AS SOMBRAS DA MORTE.
Ah, como tenho encontrado gente assim, com a “Vida Seca”, se arrastando existencialmente, amargando existir, na estação outonal, onde os pranteadores andam ao derredor, e as aves esperam a carniça para devorá-la. Em circunstâncias como esta, só um novo projeto pode trazer resultados. Aqui não adianta mudar hábitos, condicionamentos, ou até mesmo mudar de lugar, fugir, como fazia o Fabiano, do livro de Graciliano Ramos. Aqui é preciso uma nova perspectiva.
Por isso Deus – verso 12 – precisava semear entre eles um novo sonho: “trarei vocês de volta a terra de Israel”. Agora sim! Ele voltara a agir no meio do seu povo! O céu deixara de ser de bronze, impermeável, pois o tempo da visitação chegara novamente, o dia oportuno, o dia da salvação! A Babilônia ficaria para trás, com suas “simbologias” que representavam um tempo onde a “vida secou”. Mas o Espírito Dinâmico entendera que à hora do resgate havia chegado. Agora era só aguardar o livramento!
“Vidas Secas”… Como torná-las férteis novamente? Talvez analisar estes processos descritos anteriormente ajude a compreender algumas dinâmicas fenomenológicas e arquetípicas que se interpõe no caminhar dos humanos sobre a Terra.
De todo modo, em João, capítulo 7, Jesus nos apresenta uma perspectiva ainda melhor: “se alguém tem sede venha a mim e beba”. É uma metáfora em alusão a única coisa que pode gerar saciedade existencial: ir a Ele e, nEle, ser! Estais sedento? Venha e beba! Sua vida se dessignificou?
Venha e beba! Tem existido com sombras no coração, com hálito de morte? Venha e beba! Perdeu a esperança? Venha e beba! O convite permite que se plante, no “jardim” do coração, sementes de misericórdia, as quais serão regadas diariamente com lágrimas de amor. Creia-me: você verá que, em pouco tempo, elas produzirão verdadeiros milagres; paz, saúde, vida e bem.